25.3.13

Coragem


Desde os tempos do colegial era visto pelos colegas como alguém sem nenhuma vocação para o surpreendente. Perdia os dias limpando as pratarias da avó em troca de algumas moedas. Quando estava em casa, a mãe gostava sempre de ressaltar o quanto ele era vazio, ausente de qualquer vontade própria. Nas terapias escolares para definir a orientação profissional, os resultados eram divergentes, tendendo à coisa nenhuma. Nem os colegas e professores pensavam que ele seria coisa alguma.
Com os dias mais ociosos sem a escola, começou a ajudar o senhor da livraria, que lhe dava alguns vinténs por semana. De ausência pouco notada em casa, passava os dias na rua, tirando a neve de calçadas, lavando carros, fazendo compras e indo aos bancos. Não comprava comida, pois sempre alguém lhe oferecia. 
Foi assim durante os últimos meses do ano até o natal. Como já esperava, nenhum presente lhe foi dado. O pai foi para o bar na noite de véspera enquanto a mãe reunia na sala as viúvas para tomar chá e comer uvas. Ele foi pra rua trabalhar levando os assados que ficavam prontos na padaria.
Na manhã do primeiro dia do ano, pôs-se a pensar que tudo seria do mesmo jeito. E que nada podia fazer. Errado.
Talves os pais não soubessem do que ele havia juntado até então. Era uma quantia razoável, pois trabalhara bastante e não gastou uma moeda sequer. Como num impulso, pegou a bolsa que usava no colégio e colocou as roupas dobradas nela, junto com alguns documentos, dois livros e duas fotografias. Saiu de casa com a bolsa e todo dinheiro economizado e foi diretamente para a estação, sem saber o porquê. Comprou uma passagem para a capital e ficou esperando, sentado na ala de embarque, com as pernas trêmulas. O trem encostou, as portas se abriram e tudo o que fez foi correr para dentro sem olhar para trás, sem se deixar pensar. Se acomodou numa poltrona na janela, fechou os olhos, e quando o trem saiu foi-se embora com ele para onde não sabia o que ia ser. Só sabia que teve naquela manhã a coragem que todos julgavam que ele jamais teria. Deixou as desconfianças e o mundo para trás e foi em busca do desconhecido. Quando o trem passou pelo arco de rosas, que exaltava uma mensagem se despedindo da cidade, sentiu-se feliz e leve como jamais. Estava sem rumo, mas estava livre, e um homem livre pode ser o que quiser, basta coragem.

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